Da Visita Pascal

Vila Nova de Gaia é, quer se queira, quer não, um Concelho ruralizado e paroquializado. Quer isto dizer que, apesar das assimetrias que opõem o centro urbano e um litoral aparentemente desenvolvido, em termos de infra-estruturas viárias e de parque habitacional, a uma extensa interioridade carenciada de quase tudo, prevalece, ainda, uma grande proximidade entre as populações autóctones, que teimam em desafiar qualquer tentativa de globalização e de descaracterização da sua identidade, aos mais diversos níveis.

Uma das tradições desde há muito arraigadas no Concelho, como, aliás, um pouco por todo o Norte do País, e que em muito contribui para a preservação da referida identidade, é a Visita Pascal. Nascida na Idade Média e perpetuada, aqui ou ali, com uma certa dose de inovação e criatividade. Sobretudo para atrair as populações mais jovens. Levada por grupos de homens, ou por equipas mistas, hoje emFoto disponível em: http://2.bp.blogspot.com/_CFXZCsdOH6I/R-u7Rn-O92I/AAAAAAAAAUY/WwT7wvYV3bU/s400/IMG_0618.JPG crescente número, no seio das quais as mulheres se afirmam justamente como mensageiras da ressurreição de Cristo, à semelhança de Maria Madalena, o espírito é sempre o mesmo: anunciar a Boa-Nova de que Cristo ressuscitou e quer habitar em cada casa, em cada coração. Um convite à festa, à alegria, à Vida e à comunhão, lembrando que o todos estamos radicalmente unidos por laços de fraternidade.

Em registo de breve apontamento sobre uma tradição apaixonante, sobre cuja génese e evolução desenvolvi, há alguns anos, um aprofundado estudo, relevo um documento datado de 15 de Agosto de 1764, inscrito em “Alguns usos e costumes da Freguesia de Santa Maria de Gulpilhares – Separata de Douro Litoral, III-IV, 5ª série, de 1953) –, onde pode ler-se que “(…) os fregueses são obrigados a ter a porta aberta, casa varrida, e a ofertarem o que bem lhes parecer segundo a sua generosidade: porém, os lavradores mais honrados sempre ofertam um pão leve, um prato cheio de ovos, uma regueifa e pão de Valongo e uma galinha”. Mais tarde, em 1909, atestando a renovação desta prática, escreve o Padre Cid, abade de Vilar do Paraíso, que sendo o folar em dinheiro, “(…) é uma moeda de prata colocada sobre uma laranja ou uma maçã e está posta numa salva de prata ou prato de louça”. Assim se fazia, lembro, em casa do meu avô paterno, de saudosa memória.

Num tempo de extrema pobreza e de alguma falta de higiene doméstica, mas de uma simplicidade genuína, todos se preocupavam com o folar e com o exigido asseio, naquilo que se instituiu como “a limpeza da Páscoa”.

Os tempos mudaram. Hoje, regra geral, as casas estão naturalmente asseadas. Prima o conforto e o bem-estar. Talvez falte, isso sim, a genuidade originária, o espírito de solidariedade, de partilha e comunhão, o espírito que boa-vizinhança que, em muitas localidades, levava outrora vizinhos desavindos, ou não, a, neste dia, esbaterem todo o tipo de conflitos e a visitarem-se mutuante, engrossando o grupo compassante, convivendo em salutar alegria, comendo e bebendo em prol da amizade reatada ou consolidada.

A Páscoa é mesmo isto. É sobretudo isto. A casa interior arejada e asseada. Um coração aberto ao Outro, rostos felizes, espelhos da fé em Cristo Ressuscitado.

Vila Nova de Gaia é, quer se queira, quer não, um Concelho ruralizado e paroquializado. Basta percorrer as ruas do interior do Concelho em Dia de Páscoa, para se perceber do imperioso que é preservar criativamente uma tradição que une, alenta e projecta para a dimensão da fé, em primeiro plano e, consequentemente, para a comunhão, a partilha e a felicidade, esse verdadeiro folar que todos almejamos. Em Vila Nova de Gaia, a visita Pascal ainda é, na generalidade, uma extraordinária marca identitária a defender e potenciar. A concluir, “Páscoa na Aldeia” do amarantino Teixeira de Pascoaes (1877-1952):

 

Minha aldeia na Páscoa…
Infância, mês de Abril!
Manhã primaveril!
A velha igreja.
Entre as árvores alveja,
Alegre e rumorosa
De povo, luzes, flores…
E, na penumbra dos altares cor-de-rosa .
Rasgados pelo sol os negros véus.
Parece até sorrir a Virgem-Mãe das Dores.
Ressurreição de Deus! (…)
Em pleno azul, erguida
Entre a verde folhagem das uveiras.
Rebrilha a cruz de prata florescida…
Na igreja antiga a rir seu branco riso de cal.
Ébrias de cor, tremulam as bandeiras…
Vede! Jesus lá vai, ao sol de Portugal!
Ei-lo que entra contente nos casais;
E, com amor, visita as rústicas choupanas.
É ele, esse que trouxe aos míseros mortais
As grandes alegrias sobre-humanas.
Lá vai, lá vai, por íngremes caminhos!
Linda manhã, canções de passarinhos!
A campainha toca: Aleluia! Aleluia! (…)
Velhos trabalhadores, por quem sofreu Jesus.
E mães, acalentando os filhos no regaço.
Esperam o COMPASSO…
E, ajoelhando com séria devoção.
Beijam os pés da Cruz.

José Manuel Couto

Publicado no Jornal “Audiência” no dia 15 de Abril 2009

2 Respostas to “Da Visita Pascal”


  1. 1 FRANCISCO MANUEL BORGES 12/04/2010 às 17:30

    Apresento os meus cumprimentos.
    Sei que gosta de sabe escrever, de modo interventivo e cultural, gostaria de o convidar a participar sempre e quando entender e puder, no http://www.vozdegrijo.com. Um espaço que gostaria de ver partilhado por muitos e por si muito particularmente.
    Um abraço.
    francisco borges

    • 2 grijo 12/04/2010 às 18:43

      Assim farei, com muito gosto. Aliás, um jornal do género, se não quer cair na rotina e no pessoalismo do seu criador, deve contar com múltiplas colaborações, dos diferentes quadrantes políticos, sociais, religiosos, culturais…
      Já deixei um comentário no próprio jornal.
      Parabéns pela iniciativa. Vamos ver como se desenvolve este projecto ainda embrionário.
      JMC


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